Qual seria a forma mais justa de corrigir essas distorções históricas?
Do ponto de vista técnico, uma tributação progressiva faz diminuir demais as desigualdades sociais. Quem ganha mais paga proporcionalmente mais, quem ganha pouco não deve pagar nada, quem ganha um pouco mais paga um pouco mais e quem ganha muito devia pagar muito.
Aplica-se também o conceito de progressividade e regressividade em relação ao sistema como um todo. Se você considerar a incidência de todos os tributos: sobre a renda, sobre as propriedades, sobre o consumo, no final o sistema é progressivo ou regressivo? No caso do Brasil, é regressivo.
A tributação sobre o consumo é repassada aos preços. No Brasil, ela representa cerca de 50% a 60% da arrecadação nacional. A média na OCDE [Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico] é de pouco mais de 30%. Nos Estados Unidos, a tributação sobre o consumo é também de pouco mais de 30% e a renda é tributada em patamares semelhantes a esse. No Brasil, a renda é tributada em 18%.
O projeto de reforma tributária que o governo atual sinaliza que vai enviar ao Congresso conseguiria corrigir as discrepâncias históricas do Brasil?
Pelo que foi anunciado na imprensa – porque o governo ficar num vai e vem e não envia o texto –, seria uma reforma tributária que tornaria o sistema mais regressivo.
Veja o caso do fim da possibilidade de isenção do trabalho doméstico no imposto de renda, por exemplo. Vai pesar no bolso da classe média e contribuir para a informalidade. Eles tiram essa possibilidade, mas não se preocupam e não priorizam o fim da isenção total e completa sobre lucros e dividendos distribuídos.
O trabalhador e a classe média assalariada declaram seus rendimentos na ficha de rendimentos tributáveis, enquanto os empresários declaram na ficha de não tributáveis.
É uma defasagem muito grande. Uma reforma tributária de verdade precisa aplicar a progressividade dos tributos sobre a renda e a propriedade.
Por exemplo, grandes heranças: até os liberais consideram que é muito injusto alguém crescer na vida por conta de receber uma herança. Nos Estados Unidos e na Inglaterra, não se admite que alguém receba uma herança e não pague tributos. As alíquotas sobre herança já foram de 70% nesses países. No Brasil, a tributação sobre herança é de 4% ou no máximo de 8%, dependendo do estado.
Precisamos gerar um arrecadação maior na tributação dos rendimentos muito elevados e do grande patrimônio e desonerar a tributação do consumo, diminuir a tributação de energia elétrica, de medicamentos e dos bens de primeira necessidade em geral. Os mais pobres consomem mais do que ganham e se endividam. Eles pagam muito mais tributo proporcionalmente do que os mais ricos.
O projeto de reforma tributária que o governo atual sinaliza que vai enviar ao Congresso conseguiria corrigir as discrepâncias históricas do Brasil?
Pelo que foi anunciado na imprensa – porque o governo ficar num vai e vem e não envia o texto –, seria uma reforma tributária que tornaria o sistema mais regressivo.
Veja o caso do fim da possibilidade de isenção do trabalho doméstico no imposto de renda, por exemplo. Vai pesar no bolso da classe média e contribuir para a informalidade. Eles tiram essa possibilidade, mas não se preocupam e não priorizam o fim da isenção total e completa sobre lucros e dividendos distribuídos.
O trabalhador e a classe média assalariada declaram seus rendimentos na ficha de rendimentos tributáveis, enquanto os empresários declaram na ficha de não tributáveis.
Recentemente, a assessora especial do Ministério da Economia, Vanessa Canado, afirmou que há a intenção de tributar os mais ricos, mas sem correr o risco de que a renda dessa parte da população seja levada para o exterior. Esse risco existe?
É um argumento muito cínico. Fruto do cinismo. Quem é o homem mais rico do Brasil? Pela revista Forbes, é o empresário Jorge Paulo Lemann. Ele mora na Suíça.
Quem imagina que um multinacional vai deixar o país se você tributar adequadamente os seus lucros? Hoje a distribuição dos lucros já é remetida para fora do país e sem nenhum tributo!
Outro problema: a "pejotização". O principal motivo desse movimento de transformar trabalhadores em pessoas jurídicas ter ganhado amplitude é a diferença gritante entre a tributação da pessoa jurídica e da pessoa física. O trabalhador presta um serviço e o pagamento que ele usa para sobreviver é taxado como lucro.
Aplica-se a lógica do capital para os trabalhadores. A reforma tributária do governo tende a piorar isso. No ano passado, o Banco Itaú lucrou 25 bilhões de reais. Desse lucro, foram distribuídos 22 bilhões de reais desonerados de tributação para as famílias e acionistas proprietários do banco. Sem nenhum imposto, completamente desonerado.
Ou seja, o problema a ser atacado está na nossa frente.
O governo vende essa reforma como a salvação da economia, assim como vendeu a reforma da Previdência e assim como o governo anterior tratou a reforma trabalhista. Tem alguma verdade nesse discurso?
Não havia verdade nesse discurso nem na reforma da Previdência, nem na reforma trabalhista – que prometia criar mais empregos –, nem na tributária.
Há duas propostas que já tramitam no Congresso, uma de iniciativa parlamentar e outra de uma entidade chamada Centro de Cidadania Fiscal, que reúne as maiores empresas do país. É uma organização do grande empresariado. São grandes empresas que querem fazer uma reforma que mexa apenas com a tributação do consumo.
São propostas que dificultam o crescimento econômico. Os mais pobres pagam a mesma quantidade de impostos que os mais ricos quando compram algum produto. Dessa forma são obrigados a gastar tudo o que ganham. Ao desonerar a tributação sobre os mais pobres, aí sim há um estímulo à economia. Ao mesmo tempo em que tirar recursos dos mais ricos gera um fortalecimento do Estado para que ele seja um indutor do desenvolvimento econômico, coordene melhor os investimentos e melhore a infraestrutura social.
Isso gera um efeito de um ciclo virtuoso na economia. Não existe na história do mundo algum país que tenha se desenvolvido com a lógica da austeridade fiscal, que diz que o Estado não pode gastar. Outra ideologia defendida é de simplificar o sistema tributário. O que isso significa? Unificar vários tributos, inclusive os que financiam a seguridade, num imposto sobre valor agregado. Ou seja, ataca de frente a base das políticas públicas e das políticas sociais.
Há discussão sobre algum tipo de alternativa? Que reforma tributária um país como o Brasil precisa?
No âmbito do projeto Brasil Popular, nós desenvolvemos as premissas principais do que seria uma reforma tributária progressiva, para deixar nosso sistema tributário funcionando a favor do desenvolvimento econômico, da redução das desigualdades, do respeito ao meio ambiente e do diálogo com a diversidade.
No Congresso, há uma emenda aglutinativa a uma das Propostas de Emenda à Constituição que tramitam, que propõe a reforma tributária solidária. A Anfip [Associação dos Auditores Fiscais da Receita Federal do Brasil] e a Fenafisco [Federação Nacional do Fisco Estadual e Distrital] reuniram quarenta especialistas e, dali, saiu um projeto com contornos muito bem definidos.
Nesse estudo, está demonstrado que é possível deslocar recursos equivalentes a 5% do PIB [Produto Interno Bruto] dessa base de tributação do consumo para a base de tributação da renda e patrimônio de forma progressiva, sem alterar a carga tributária.
Além disso, não há porque a gente dizer que a carga tributária não possa aumentar. Todos os países que se desenvolveram aumentaram carga tributária, mas não sobre o andar de baixo da sociedade, e, sim, sobre quem tem capacidade contributiva. O país precisa se desenvolver e a reforma tributária tem que ser uma indutora desse desenvolvimento.
De proposta concreta, o que a gente tem é uma reestruturação da tabela progressiva de imposto. Primeiro, todos os rendimentos devem ir para a tabela. Por que o salário vai e o lucro não vai? Reestrutura a tabela de alíquota, vai até 40% e quem vai pagar os 40%? Quem ganha acima de 80 salários mínimos por mês.
Para quem ganha acima de um milhão por ano, nós propomos que pague uma contribuição social que ajude no orçamento da seguridade social. Dessa forma, a gente vai diminuir PIS [Programa de Integração Social] e Cofins [Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social], tributos que também financiam a seguridade, mas impactam os preços das mercadorias e dos serviços.
Há propostas também de tributação para grandes heranças, de aperfeiçoamento na fiscalização de operações de comércio exterior, combate aos paraísos fiscais. É uma proposta completa, que inclusive foi abraçada pelos partidos de oposição. Se organizações populares e sindicatos perceberem a importância de discutir a tributação, o debate sobre essa proposta ganha mais força.
Tudo bem, o desânimo é grande com tudo o que vem acontecendo no Brasil, mas é preciso que a gente se mantenha no debate. Se tivermos consciência de que esse instrumento é importante e que a história já mostra que isso deu certo, a questão tributária pode ser uma ideia-força para nos mobilizar.
Essa conversa não pode ficar só entre empresários e políticos. Ela precisa chegar ao povo. É uma ideia-força, porque é muito evidente o contraste entre alguém que recebe R$ 22 bilhões de lucros isentos de imposto sobre esse valor e o trabalhador precarizado, massacrado, sem direito algum.
Fonte: NOVA CENTRAL SINDICAL DE TRABALHADORES